domingo, 2 de agosto de 2015

Os Cabisbaixos por RN - Quem Conta um Conto - Livros de Ontem


Os Cabisbaixos

por RN


Antero era invadido por calafrios sempre que se lembrava de quando, em pequeno, viajava até à capital para visitar a família. Normalmente acontece ao contrário: pais, filhos, tios, primos, sobrinhos vão quase em romaria da cidade ao campo, com os carros cheios de malas, sacos e cestinhos que, se é possível, regressam ainda mais cheios. A culpa era dessa malfadada crise, que fez com que Antero e os pais – pastores desde que aprenderam a andar – fossem os únicos representantes do clã a permanecer na aldeia. Daí que, na maioria das vezes, fossem eles a deslocar-se para as reuniões familiares.

Uma grande náusea veio juntar-se aos arrepios na espinha quando os pais lhe comunicaram, com a voz embargada de orgulho, que tinham conseguido amealhar o dinheiro necessário para que Antero fizesse a faculdade na cidade. Esperavam agradecimentos, sorrisos e pulos de excitação, mas o filho fez finca-pé, disse que não ia e saiu para o monte com o rebanho. Ele queria lá ir para aquele sítio detestável, onde sabia que a solidão crescia como cogumelos no meio das multidões.
 
Mas os pais insistiam. Tinha de fazer sacrifícios se queria ser alguém na vida; que esta coisa de pastar cabras e jogar à bisca no Café Central não era futuro para ele, rapaz tão inteligente. Antero não quis desfazer-lhes o sonho e, alguns meses depois, partiu na carreira das seis da manhã.
 
Aquilo que o rapaz odiava na cidade não eram tanto os carros ou o barulho, como parece acontecer até com quem lá nasce. O mau cheiro dos esgotos e o fumo das fábricas também não o incomodavam por aí além. Toda a gente andava cabisbaixa e era isso que mais o impressionava.
 
Não estavam propriamente tristes ou sozinhos – alguns sorriam e outros até riam – mas ninguém olhava nos olhos. O chão parecia ser infinitamente mais interessante que o mundo em volta. Era impossível andar na rua sem magoar os braços: o mais frequente era levar encontrões sem que um pedido de desculpas viesse a seguir.
 
Antero era alto e magro, por isso armava-se de toda a ligeireza de que conseguia e esgueirava-se pelo meio das pessoas. Enquanto caminhava pelos passeios, sentia que era o único com a capacidade de observar. À hora de almoço passava por cafés e restaurantes e lá estavam eles, de olhos em baixo, o que a Antero causava muita confusão, já que os pais sempre lhe tinham ensinado que durante a refeição se deve partilhar mais do que a comida.
 
Passaram semanas e atrás delas vieram os meses. O rapaz completou o primeiro semestre de estudos sem dificuldade e esperava agora ansiosamente pelos pais para festejar o Natal. Tinham apanhado a carreira das seis da manhã e Antero foi buscá-los ao terminal. Muito surpreendido ficou aquele casal de pastores, tal o estado em que o filho se encontrava: meio curvado, cabisbaixo, de olhos pregados no chão. Olharam melhor. Não, não era no chão. Tinha algo nas mãos e teclava desenfreadamente.

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