quinta-feira, 2 de junho de 2016

Livros de Ontem - Quem Conta um Conto | Espelhos por R Figueiredo


Espelhos

por R Figueiredo


Era uma vez uma menina. Uma rapariga perfeitamente normal.

Ela achava-se feliz. Vivia sozinha, mas tinha amigos. Um emprego que pagava pouco, mas deixava-a alegre e com tempo livre.

Mas tinha uma peculiaridade: não gostava de espelhos. Em casa não tinha nenhum. E quando visitava os amigos ou a família, os anfitriões tinham que tapar os que havia. Nos quartos, nos banhos, nos corredores.

“Por que não gostas de espelhos?”. Era uma pergunta bastante comum.

Tinha aprendido a viver com essa pergunta. Gracejava e dizia: “Na verdade sou vampira e não quero que ninguém descubra”.

Por vezes olhava, sem querer. Num elevador, na parte de trás de um bar, apanhava de relance o seu reflexo. E o deles.

Desde sempre se lembrava de os ver no espelho, mas ninguém mais os via. Figuras quase humanas, mas não completamente humanas. Quando era pequena, “eles” estavam sempre ao pé dela. E olhavam para o reflexo dela. Não se mexiam, não falavam. Simplesmente olhavam.

Ela tentava viver a sua vida normalmente. E de certa maneira, conseguia. Com pequenos sacrifícios. Uma vez que não tomava café com os amigos porque tinha medo de olhar para uma janela espelhada. Ou não jantar fora com a família porque não queria usar a casa-de-banho. E aos poucos ia tomando decisões sem saber que o estava a fazer. Uma história que ficava por partilhar, um beijo que ficava por dar, um amigo que se ia embora e nem tinha oportunidade de se despedir.

“Mas eu sou feliz” pensava ela, cada vez que entrava na sua casa vazia e fria. “Eu sou feliz” dizia ela, tentando convencer os seus pais e a ela mesma. “Feliz” sussurrava, enquanto chorava pela noite dentro.

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