terça-feira, 2 de junho de 2015

Um crisântemo para Rosa por Gurb


Um crisântemo para Rosa 

por Gurb


Lá vinha ela, finalmente!

— Bom dia, minha senhora!

— Bom dia, disse ela enquanto descia os três degraus que separavam a casa do jardim, com uma lentidão senhorial que mais não era do que o reumático a manifestar-se.

Vinha toda aperaltada: fatinho amarelo, chapéu da mesma cor e berloque na lapela. Toda ela frescura e juventude, que os setenta e sete anos eram para se guardar em casa. O jardineiro, ajoelhado na relva, pousou as ferramentas, descalçou as luvas e pegou num crisântemo que tinha ao seu lado. Aproximou-se e, como sempre fazia, disse:
— Um crisântemo para uma Rosa.

Ela já lhe conhecia a manha, tão habituada estava à lengalenga diária do jardineiro. Mas que fazer? Aquilo fazia-lhe graça, a atenção que o outro lhe dava era um bocadinho pateta mas ela já não sabia passar sem ela. E, como sempre, aceitou o crisântemo com um sorriso.

Atravessou o pequeno caminho que levava à portinhola, olhou para trás, disse adeus ao jardineiro, contemplou o jardim. Estava belo. Belo, de facto: as gerberas, os jarros, as rosas, os crisântemos, todos em explosão de cor e vivacidade. Os crisântemos sobretudo, mais vívidos que qualquer outra flor no jardim e em todo o bairro.

— Ai querida, o que faz com tanto crisântemo?

Rosa sorriu e beberricou um pouco mais do chá que partilhava com a amiga Adelaide num pequeno café a não muita distância de casa.

— Ponho-os numa jarra, em casa. Às vezes em duas ou três. E por lá ficam até murchar. Dá muita vida à casa, os móveis são todos escuros...

— Sim, mas ele podia dar-lhe outra flor, não acha? Tem lá rosas tão bonitas...

— Sim, mas assim tinha de dizer “uma rosa para Rosa” e isso não ficava bem.

Riram as duas e a amiga Adelaide deu uma trincadela no seu éclair, bolinho que não dispensava em dia nenhum do ano e em parte nenhuma do mundo.

— Afeiçoei-me muito ao pobre coitado, sabe, Adelaide? O que é certo é que tem tratado sempre muito bem do meu jardim.

— Ele é viúvo, não é?

— É sim, a mulher teve uma trombose.

Ficaram em silêncio. Beberam chá.

— Não há dúvida de que o seu jardim é dos mais bonitos da rua. Ora veja o meu, só meia dúzia de buxos mal amanhados. Mas isso é porque o meu marido só contrata inúteis.

— Lá nisso o meu Anselmo sempre teve olho para o pessoal. É uma grande tristeza que ele já cá não esteja...

— Pois é querida, não pense mais nisso, ele foi-se embora, não adianta mais chorar sobre o assunto, fez a escolha dele, não é verdade?

— Mas desaparecer assim...

Pois era, desaparecer assim. Mistério nunca resolvido que muito deu que falar no bairro, lembrava a amiga Adelaide ao acompanhar Rosa a sua casa. Um dia, Anselmo estava lá, no outro já não. Puf. Assim. O que lhe acontecera ao certo, ninguém sabia. Deixara tudo para trás.

Quando a outra fechou a porta atrás de si, a amiga Adelaide ficou a contemplar o jardim. Realmente não havia ali flores mais vivas do que aqueles crisântemos. 

E lá andava o jardineiro em volta deles, com um ancinho, remexendo a terra, quase pondo todo o seu afinco na busca da absoluta perfeição daquelas flores. Seria da cabeça de Adelaide ou ela vira até algo dourado a brilhar no meio da terra? Disparate, pensou, então o homem ia lá pôr coisas douradas na terra. E para quê?, sorriu; para os crisântemos ficarem mais amarelos?

— Qual é o segredo? Também gostava que os meus crisântemos florissem dessa forma.

Aproximando-se mais, a amiga Adelaide surpreendeu assim o jardineiro com esta pergunta. E o brilho dourado ali estava. Era um anel. Uma aliança? Que estranho, o jardineiro tinha as suas duas alianças no dedo.

— É amor, minha senhora.

E sorriu. Depois, lentamente, pegou na aliança caída e voltou a enfiá-la na terra.


Sem comentários:

Enviar um comentário